O por quê que você deve escrever sobre o que você entende. | Diário de escrita #4
Há alguns anos iniciei uma história que aborda a violência na vida dos jovens, mais especificamente sobre drogas. Aos poucos a história foi se desenvolvendo por si só. Um escritor sempre pode gerar ideias, mas naturalmente essas ideias vão gerar uma consequência. Se o escritor estiver preparado e souber de antemão o que ele está gerando e "co-gerando", as consequências fazem parte do plano e é um resultado positivo. Por outro lado, alguns escritores idealizam uma cena, uma ação ou um acontecimento que pode trazer emoção para a história, podendo até mesmo abordar um tema: violência, como eu fiz, abuso sexual, patologias, violência domestica, enfim... vários. Mas no final, ele é pego de surpresa ao ver que a ação que ele gerou, co-gerou algo que ele não queria dentro do livro.
Os temas acima são assuntos que precisam ser falados e que a maioria dos autores querem abordar, mas a questão é: se um dos seus personagens sofre de alguma dessas coisas, o escritor estará preparado para escrever sobre isso? Não é apenas sobre dizer que o personagem passa por isso. Vai muito mais além.
Eu nunca achei que nós tínhamos que vivenciar tal coisa para escrever sobre isso, ou morar em SP para narrar uma história na cidade. Sempre achei que a graça de escrever está na nossa liberdade de criar qualquer coisas em cima de qualquer coisa. Mas recentemente, percebi que chegou em um determinado momento onde os meus personagens já estavam "vivos". Já tinha si tornado "pessoas". O Peter é alguém que sofre na mão do crime organizado. O Peter é só mais um dentre vários. Porém, o Peter é o representante dos jovens reais dentro da minha ficção. Eu poderia optar por quem morreria na minha história, quem matava e se o personagem se safaria ou não. Nós escritores podemos fazer (ou até abusar) disso. Coma vida real não.
A medida que eu ia escrevendo situações de riscos, isso gerava diretamente o medo no meu personagem, e o medo, indiretamente, co-gerava a insegurança com a Alice (par romântica), assim como preocupação com a sua família e a incerteza do futuro. O desespero, entende? Não é só o amor impossível e perigoso que habita no livro de ficção, mas quando percebi o Peter me mostrou que o buraco é muito mais fundo e por diversas vezes mede sete palmos na vida real. A família sofre, os amigos sofrem, muitas pessoas perdem, e por mais que seja ficção no meu livro, no mundo é real. O meu personagem representa alguém real e eu não posso tratar isso como brincadeira (poder posso, mas escolho não fazê-lo).
Eu estou tentando finalizar a história e percebi que poderia prender todo mundo, transformar o crime em segredo de amigos e colocar um ponto final. Felizes para sempre. Mas passei a ver isso como um abuso de poder do escritor (ou mesmo falta de justiça, empatia e ética se você é desses que pensa "o livro é dela, ela faz o que quiser"). O conselho que eu deixo aqui para quem escreve é: sim, você pode fazer o que quiser com o seu livro, controlar os seus personagens, afinal foi você quem os criou, é você quem está criando, mas saiba que eles já possuem voz própria (pare. e. ouça) em algum momento. Depois de algumas páginas e acontecimentos criados por nós nos primeiro rascunhos, eles já estão meio que completos. Fisicamente e mentalmente. É depois disso que entra o processo de revisão e edição para mudar e ajustar o que você deseja mentalmente e deixar claro nas páginas.
Estou falando sobre isso porque no inicio pensei estar escrevendo só uma (ou mais uma) história sobre um rapaz que se envolveu com coisas erradas e uma garota que se envolveu com o rapaz errado, mas quando eu estava no meio percebi que eu já não tinha mais o total direito de levar a história como eu bem queria porque Alice e Peter estavam passando por coisas graves e eu não poderia fingir que nada de real e grave não estava acontecendo só porque é apenas um livro, afinal eu tenho um tema importante da vida real em minhas mãos sendo abordado. Quando digo ignorar, quero por exemplo: João levou um tiro para salvar Pedro de um stalker. Pedro levou joão para o hospital. Você pode resolver levar os dois para casa juntos; ou pode pensar na consequência que se é entrar baleado num hospital, porque ela existe e em como isso vai afetar os próximos fatos do livro. Isso é a tal da coerência narrativa.
Digo isso porque sentei para finalizar a história e percebi que os fatos e os acontecimentos tinham ido muito mais longe do que eu programara. Foi uma consequência que eu não estava preparada. Admito quem em 2015 eu pensei: escrevo um romance, narro umas cenas de ação e no fim eles se resolvem e fica tudo bem, mas cheguei no meio da história e percebi que minhas ações geravam reações dentro da estória e eu tinha duas escolhas: ignorá-las e ser incoerente ou aceitá-las, resolvê-las e tentar contorná-las, o que nem sempre é possível sem que você tenha que reescrever algumas coisa.
E pouco depois que é onde estou hoje percebi que o livro não foi sobre um cara com ar de badboy e uma mocinha, mas foi sobre família também. O tema que abordei no inicio era porque eu queria apenas escrever sobre ação e amor, mas hoje eu vejo que é algo muito mais profundo. Um tema muito mais amplo e complexo. Eu cheguei na reta final e todos os meus personagens estão emocionalmente destruídos e isso não foi o fim que imaginei na minha cabeça, porém é o que acontece na vida real dentro desse tema. Mas também aprendi que esse erro não é de todo ruim. No entanto, eu não sei se isso está mais pra bom do que pra ruim agora que é um desafio finalizar Alice & Peter (título por demais original, certo? :P).
Foi bom porque me fez ver que os temas que usamos para criar estórias são muito delicados e são reais demais para que nós não os levemos a sério. Ou ruim porque, apesar de eu ter escrito o livro, de ter criado os personagens, eu não imaginei que as ações que eu tomava, geraria as reações nesse final. Tipo, eu devia estar preparada. Mas isso também foi uma lição para a técnica do gerar para co-gerar (fazer uma ação pequena hoje que vai gerar uma reação importante amanhã, como um acontecimento natural ou servindo de carta na manga).
Também pude entender porque devemos escrever sobre algo que temos domínio. Fui me localizar no que já tinha acontecido com a a Alice, e o mais coerente é que ela esteja triste, arrasada, confusa e talvez até com alguns traumas, mas por mais que eu conte tais coisas, não vai soar convincente porque eu não passei por isso. Não estou dizendo que o escritor deve passar por determinadas coisas para escrever sobre aquilo, mas me fez ver o tamanho da responsabilidade que é posta em nossas mãos. Eu não posso escrever qualquer besteira depois de tudo o que ela passou.
Eu não sei se você é alguém com treze, quatorze ou quinze anos que escreve historias de morro e romantiza o tráfico no Wattpad, ou se você é alguém que está abordando temas como suicídio, abandono, crime. Se você está escrevendo sobre algo importante. Trate isso de forma importante. As vezes a gente acha que basta escrever, escrever e escrever, mas não é assim. Eu também achava. Por mais que pareça que nós sabemos o suficiente, nós não temos nenhum domínio sobre tal coisa se não temos experiencias com aquilo, seja vivenciando ou como espectador. Então pesquise! Se informe. Um escritor não vive só de palavras escritas, mas de estudo cientifico, de pesquisas pessoais, de observação e absorção. De empatia.
Nós escrevemos sobre coisas serias e tem gente que passa realmente por elas, e estas pessoas podem encontrar os nossos livros, se identificar com eles e depois perceber como aquilo tá uma merda ofensiva ou desnecessária. Talvez porque a verdadeira dor não é sobre aquilo que nós escritores achávamos que era e resolvemos bater em cima. Talvez porque aquilo não está sendo focado no que realmente é importante para quem vivencia o quadro onde apresentamos nossos personagens. Ou pior, ele pode ser influenciado por alguns dos nossos personagens, e se isso for acontecer que seja por algo positivo.
Pensem sobre isso. A nossa profissão, o nosso dom, é lindo. É algo inspirador. Você pode sim escrever sobre qualquer coisa, mas prefira escrever de uma forma que a inspiração sirva de ajuda e seja positiva. E lembre-se também de que é muito mais produtivo escrever sobre coisas que nós mesmos passamos porque conseguimos expressá-las com afinco a sensação real que é de estar em tais circunstâncias, mas se for optar por abordar algum assunto lembre-se de tratar tal com carinho e ter empatia. Tente conversar com pessoas que tenha passado por tais coisas também. (:
É isso pessoal. Obrigada pela atenção de vocês e até o próximo post. 💕
É nóis, turma! ☕
Vamos nos seguir nas redes sociais, migos.
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